terça-feira, 29 de março de 2011

"Abraçando a dor é assim que eu tô..."

Entra, senta aí. Quer um café? É que a sua companhia preenche cada canto vazio, dilui cada expectativa e me abraça por inteira. Você gosta de se impregnar em mim. Eu só não sei até que ponto eu desgosto de você, já se tornou tão cotidiano, tão inerente você em mim. Pertenço a um tempo que a solidão é solidária, juro que sim! Eu só não sei até que ponto gosto de você, pra querer me livrar assim de algo que é pedaço meu. A gente sempre se entendeu. Nunca se gostou mas sempre se entendeu. E sua estadia aqui em casa sempre se estendeu. Não é que eu queira me livrar de você mas é que eu preciso de mais espaço. Não é que você não tenha mais serventia mas é que eu não sei mais como te usar: de ponta a cabeça, de ladinho, de frente, por cima e por baixo. Todas as posições conhecemos, experimentamos e rotulamos como "nossas". E quando você chega, meio de surpresa, lateja e potencializa em mim. Você se canaliza e eu não consigo respirar. É que você já me deixa tão anestesiada que confudo minhas vontades com seus quereres. Eu te tranco mas você sai, eu cozinho e você come. Se alimenta de cada essencia de perjuro que não vou voltar atrás. E usa contra mim! Gosta de saber que sempre tem razão, paga seu aluguel assim. Desculpa, não posso ficar mais. Tenho que ir, não moro mais aqui. Senta e toma seu café. Sinta-se em casa, dor.

No playlist toca: "Naquela estação", (Adriana Calcanhoto).

domingo, 27 de março de 2011

Depois de lá.

Aqui no limite do mundo o céu é meu teto, a areia minha cama. Tento alcançar estrelas bailarinas que caem de encontro ao mar, presságio de desejo concedido. A brisa, tão carinhosa, ora dança com meus cabelos, ora tenta me elevar até o pensamento. Ela é cumplice e prima da solidão. É que chorar se tornou tão corriqueiro que as vezes nem me percebo afogada. Não dói, anestesiou. Vislumbro alegrias que nunca foram minhas, cópias de lembranças que um dia busquei e não achei. Se você um dia chegar é capaz de não me achar; é que nem sei se sou de verdade. Daqui de cima, tudo é tão pequenininho, medíocre, desimportante que já não interessa mais os anseios, qualidades, obliquidades, sonoridades. E lá no horizonte, amanhece. Todas as cores se misturam à minha retina, se fundem com minha pele. Escutou o silêncio? Fez-se capaz de queimar pra sentir? Tem coragem de mudar? Então vem comigo. Pulei.

No playlist toca: "Samba de ir embora só", (Fernando Anitelli).

quarta-feira, 23 de março de 2011

Flores secas.

Recebe essas flores secas em agradecimento ao meu amor que devolveu.

 No playlist toca: "A primeira semana", (O Teatro Mágico).

Faxina.

Esse silêncio que grita entre as prateleiras e essa mania da poeira de irritar; tenho que remexer nos livros. Tenho que remexer aqui dentro. É que tá tudo tão bagunçado, vou jogar esse liquidificador fora. Vou trocar de travesseiro, esse não aguenta o peso dos meus pensamentos. As lágrimas embaçam a vista da janela, confudo faróis com estrelas. Retratos são vidas engessadas que espatifei, não quero mais aguar na lembrança; não quero mais viver no que não foi, não quero saber o que teria sido. Eu não quero tantas coisas e tá tudo bagunçado. E esse apego entulhado no meu armário? O que eu faço com os saltos altos que não me elevam a lugar algum? A poeira se impregnou nessas paredes geladas, que mania de irritar! As janelas dão vista pra lugar nenhum, vou me perder entre as cortinas e quem sabe não perco o caminho de volta? Quem sabe eu acho do outro lado o que eu perdi aqui? É que tá tudo bagunçado, tudo tão empoeirado, já é antiga essa mania de irritar. Quem sabe eu não durmo no pé da cama e acordo em pé de guerra?! É que vai ser uma luta arrancar essa poeira impregnada com mania de irritar. Dentro das gavetas acabei achando o que não vim procurar: óculos, binóculos, monólogos, cartas, descartas, gravações, orações, esperança, marias, escritos, promessas empoeiradas que me fazem esperar dentro dessa mania de irritar.

No playlist toca: "Eu não sou Chico mas quero tentar" (O Teatro Mágico).

sábado, 19 de março de 2011

Palavreadora.

Palavreadora! Foi assim que ela nasceu. Foi assim que ela cresceu. E foi assim que ela não parou. Seu dom era uma maldição. Ela conhecia todas as palavras. A palavra conhecia toda ela. A língua era incontrolável e seus dedinhos eram indomáveis. Seus devaneios saiam pela boca, saltavam pelos ouvidos, escapavam pelo nariz, fugiam pelo umbigo... Sua cabeça afundava travesseiros, as folhas nunca em branco, o silêncio nunca preenchido. Era irresistível a vontade de existir entre textos, subtextos, versos e in-versos. Se escondia entrelinhas, nunca fora. Fazia de cada livro, um degrau. Ela queria estar sempre à espreita, pronta pro bote em busca da palavra perfeita. Ela agarrava e engolia. Era dela, se fundiam. Palavreadora... Era ela que paria, dava sentido, dava a vida. Era ela que encorpava, que exalava, encaminhava. Era dela. E ela era da palavra. Era de palavra.

No playlist toca: "Deve ser" (Jorge Vercillo).